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Reportagem do Jornal Correio da Bahia

Saiba como é a vida dos baianos concurseiros que viajam pelo Brasil

Saiba como é a vida dos baianos concurseiros que viajam pelo Brasil



Acompanhamos 120 estudantes que foram, de ônibus, fazer prova da Polícia Civil de Goiás; 3 mil km de estudo, comida cara, pouco banho e um objetivo em comum


A noite estava serena, e a viagem, tranquila. Parecia que todos já haviam superado a eliminação do Brasil na Copa do Mundo. Afinal, ninguém tinha sequer visto o jogo direito. No escuro do ônibus, uma voz ‘malassombrada’ repetia, incansavelmente: “Estado de sítio, presidente determina; Estado de defesa, aprovação do Congresso; Estado de sítio…”. Era Daniel, andando pelo corredor do ônibus, tentando não esquecer o assunto de Direito Constitucional. Ele foi um dos 120 baianos que percorreram cerca de 3.500 quilômetros de estrada, no esquema bate-volta, com o único propósito: estabilidade financeira.


Estes concurseiros, que pagaram uma excursão especializada em promover viagens para estudantes, foram até Goiânia fazer a prova para a Polícia Civil de Goiás, que oferece salário inicial de R$ 6.353,13. Foram dois ônibus, e o CORREIO acompanhou toda a peregrinação de 62 horas de muito chão, pouco banho, comida cara, resenha e muita vontade de vencer.


“Zorra, repórter ‘dos Correios’, tenho receio de dormir e esquecer 10% do que estudei. Nem vou tomar banho pra não correr o risco de algum assunto se perder pelo ralo. Só vou tomar banho em Goiânia... Depois da prova”, disse Daniel, com seu casaco de general, bermuda tactel e sandália do Bahia.


A excursão começou na sexta-feira, dia 9, justamente o dia do jogo entre Brasil e Croácia pelas quartas de final da Copa do Mundo. Desde os dias que antecederam a viagem, alguns avaliavam no grupo do


WhatsApp a possibilidade de o ônibus dar uma paradinha no meio da estrada. “A gente atrasa na hora de almoçar e está tudo certo. Vamos almoçar às 12h. Esqueceu que precisamos mastigar 30 vezes cada garfada? Neste ritmo, só vamos terminar perto do fim do jogo”, sugeriram.

Mas não tem ninguém besta. Já prevendo o golpe do jogo, os motoristas dos dois ônibus da viagem resolveram parar para o almoço às 11h, uma hora antes da partida. “Senhores concurseiros, se não pararmos agora, só pararemos em outro posto que possui estrutura para tanta gente depois das 14h, em Maracás”, avisou um deles.


Ninguém aguentava mais comer salgadinho, e a fome falou mais alto. Na primeira parada, ainda na Bahia, o almoço custava R$ 62 o quilo. Porém, existia a possibilidade de comer à vontade por R$ 25.


Para sorte de todos, além das 120 pessoas da excursão, outros ônibus chegaram para o almoço, incluindo concurseiros do Piauí que também fariam prova em Goiás. “Eu já fico tonto quando desço do ônibus, pois estamos desde ontem na estrada. Estou fedendo, com fome e sem saber se quero mais esta vida pra mim. Concurseiro só se lasca e no final do ano ainda vem aquela tia sacana perguntar: ‘Já passou em algum?’”, disse o piauiense Ricardo Cardoso, que se juntou aos colegas e concorrentes da Bahia.


Conseguimos ver 10 minutos do jogo, até o motorista começar a buzinar chamando de volta para a peregrinação. No caminho, ainda deu para ver uma parte do primeiro tempo, graças ao celular de Wesley Silva, que estava na primeira poltrona da parte de cima do ônibus. Ele levantou o braço para que todos pudessem ver a tela, até que caímos no limbo da estrada, sem sinal de vida, tampouco de celular. “Pegou aqui! Fizemos um gol, fizemos um gol na prorrogação!”, gritou alguém do fundo do ônibus. Só deu tempo de ver isso.


“Que venha a Argentina! Já foi, pai”, gritou Daniel, que àquela altura já ganhara o apelido de Major, o líder do ônibus 1. Todos riam, crentes que o Brasil estava nas semifinais, até que chegamos a Caetité e o sinal voltou. Os sorrisos, não. Concurseiro não tem um minuto de alegria. O jeito era abrir o livro e estudar, pois a estrada era longa. Silêncio mortal, todos estudando.


Reflexão

Não precisa de muito tempo com esses estudantes para cair numa reflexão. Não seria exagero, tampouco jocoso chamá-los de novos retirantes da estabilidade financeira. Segundo a última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia foi o estado com maior índice de desemprego do país no segundo trimestre de 2022, com 15,5%. Muito acima da média nacional, de 9,3%. No Brasil, 10,1 milhões de pessoas estão sem emprego.  Se não tem mercado de trabalho, uma boa opção é meter a cara no livro e correr o país.




Outro problema: nem todas as vagas estão na Bahia. Para se ter uma ideia, atualmente o estado está com quatro editais abertos, com 149 vagas no total. Os maiores salários são oferecidos pelo Ifba, com R$ 3.130,85 por mês, além da Defensoria Pública, com salário de R$ 3.068,25, mas como Reda, um emprego temporário, com duração de três anos.


Em contraponto à realidade baiana, o destino da viagem, Goiás, está com seis editais abertos, com total de vagas que não supera muito o da Bahia: 200. Mas os salários oferecidos fazem cada quilômetro de estrada valer a pena. O menor subsídio oferecido é da prefeitura de Flores de Goiás, com R$ 3.403,36. Já supera o Ifba e a DPE daqui. O maior salário? O TRT de Goiás oferece R$ 14.271,70 para nível superior. O jeito é pegar estrada. Mas é caro.


No dia da viagem, o voo mais barato para Goiânia custava R$ 1.200, ida e volta. Passagem de ônibus, R$ 395, apenas ida. No hotel onde ficamos na capital de Goiás, a diária custa R$ 258. Com valores altos, muitos estão recorrendo a excursões especializadas com pacotes de viagem para provas e concursos públicos, como a que viajamos. Fomos pela Rios Excursões, que cobrou R$ 710, com direito a transporte e hospedagem, podendo dividir no cartão. Além do preço, outra vantagem é que a viagem é planejada especialmente para a prova - e todos possuem o mesmo objetivo. 

Em solo goiano, ainda tinha gente com camisa do Brasil do dia anterior. Major está de camiseta preta

(Foto: Divulgação)




“Todos os anos são aplicados concursos para diversos cargos em vários estados. Dentre todos os sacrifícios do concurseiro, surge também a preocupação de como chegar ao local da prova. Há oito anos decidi fazer a Rios Excursões. Eu também sou concurseiro e sei de nosso sofrimento de ter que buscar hotel, viagem... É muito bom ver isso tudo planejado e só se preocupar em estudar”, diz Helder Rios, dono da empresa.


A Rios realiza uma média de 20 viagens por ano e tem mais de 3 mil concurseiros cadastrados no seu banco de dados. Na Bahia, poucas empresas são especializadas nesse ramo. Em Salvador, encontramos apenas mais uma, a Caravana do Marcão.  “Na excursão você viaja apenas com concurseiro, troca conhecimento, faz amizades e, quem sabe amanhã, parceiro de trabalho”, completa Helder.


De fato, viajar numa excursão assim é como construir uma família. Com 30 minutos de viagem, todos já sonhavam trabalhar juntos no Centro-Oeste. Trocavam informações, ensinavam assuntos, tiravam dúvidas. A viagem, mesmo com o Brasil eliminado na Copa, se tornou uma aventura agradável com um grupo unido.


Toda esta integração chamou a atenção de Wesley Silva, de 23 anos, aquele mesmo que estava segurando o celular no jogo do Brasil. Foi a primeira viagem dele de excursão. “Cara, ganhei uma família nesta viagem, com os mesmos problemas e sonhos”, disse. Wesley estuda desde 2020, quando se formou em tecnólogo em gestão pública. O pai sempre o incentivou a estudar e não deixou o filho trabalhar, pedindo para que ele estudasse. Isso custou caro para Wesley, principalmente com alguns familiares.


“Meu pai é peão, trabalha duro. Doía muito ter que ver meu pai indo trabalhar à noite, enquanto eu estava me dedicando aos estudos. Muitos familiares diziam que eu estava me aproveitando da bondade do meu pai para ficar na zona de conforto. Diziam que meu pai era meu escravo, que eu era principezinho dele. Me machucava muito ouvir isso. Acho que o concurseiro sofre muito preconceito quanto a isso, pois ninguém enxerga como um investimento a médio e longo prazo”, lembra Wesley.


Ele, como quase todo concurseiro, levou muito pau. Tomou bomba na PM baiana, prefeitura de Salvador, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil de Alagoas, de São Paulo… Mas nada de desistir. Este ano, passou para a Polícia Penal de Pernambuco e a Civil da Bahia. “Concurseiro sofre, pega estrada, roda o Brasil, mas não desiste nunca. A fila anda, e uma hora chega nossa vez. Quando chega, é bom demais. Meu pai está radiante e eu também. Construímos juntos este sonho. E não parei, viu? Meu foco é a PRF”, diz Wesley.


A primeira parada em território goiano foi no meio da estrada. O relógio já apontava quase 22h quando finalmente foi possível tomar um banho. Custava RS 10, oito minutos de chuveirada. Um frentista controlava o registro. “Tá quase acabando o chuveiro número 5! Adiante aí!”, gritava o fiscal de banho.


No restaurante, mais um golpe. Ao invés do tradicional cafezinho (R$ 6), optei por um suco de laranja que custava R$ 10. Acreditava ser uma jarra, mas era um copo de 300 ml com quatro pedras de gelo dentro. “O Correios foi furtado mediante fraude! Vamo prender todo mundo aqui”, gritava Major, enquanto segurava sua necessaire escrito “pai do ano” como se fosse arma.


Após 31 horas, finalmente a excursão chegou a Goiânia, no sábado, às 14h. Almoço PF de R$ 21 e hotel até com banheira. O baiano Negro Jay não contou conversa. Foi encher a banheira para relaxar enquanto assistia a um resumão. Mas concurseiro só se lasca: na primeira rodada do registro da água fria, a torneira quebrou. “Porra, tive que tomar banho só com o chuveiro quente. Quente, não, fervendo. Não sei se me banhei ou ganhei algumas queimaduras de segundo grau”, brincou. Em Goiânia, todos se entocaram nos quartos para dar uma revisada final. À noite, um passeio rápido pela cidade. Alguns empolgados prorrogaram, só chegando 2h da manhã no hotel. Ninguém é de ferro.


A prova foi na tarde de domingo. Todos já deveriam estar de banho tomado e com as malas no ônibus, pois logo após a prova pegaríamos estrada novamente.  Após cinco horas de prova, a própria Rios Excursões liberou um tempinho para a turma passear um pouco por Goiânia e jantar. Todos foram para a Feira do Sol, um evento local com comidas típicas. Após a prova com 80 questões e uma redação, este foi um dos raros momentos de relaxamento. “Acho que o pós-prova é o momento de paz para o concurseiro, pelo menos até o dia seguinte, quando já nos preparamos para o próximo edital”, comentou Leandro Aquino.

Após a prova, uma cervejinha para relaxar 

(Foto: Divulgação)




Leandro corre o Brasil fazendo provas com sua esposa, Amanda Aquino. Ambos estavam conosco. O sacrifício é grande. Eles deixam a filha de 6 anos com os pais. “Ela já pergunta pra gente que dia viajaremos novamente. Ela até gosta, pois as avós fazem todas as vontades”, lembra Amanda, que é concursada há 16 anos na prefeitura de Salvador, mas está em busca de novos ares com o marido, que começou a estudar em 2020 e teve sua primeira aprovação este ano, na Polícia Penal de Minas Gerais. “A ideia agora é fazermos as provas juntos. Fizemos uma em Manaus, ambos foram classificados. Estamos aguardando. Ele passou em Minas. Eu tenho uma prova em Minas em janeiro. É bom eu passar, né? Para irmos todos juntos”, disse Amanda.


Um sambinha, cervejinha de leve e correção do gabarito foram o ingrediente do retorno à capital baiana. Alguns comemoravam o rendimento, outros discutiam questões passíveis de anulação. O retorno foi cansativo, mas sem o peso da prova. O primeiro ônibus chegou a Salvador às 3h da madrugada de terça-feira, dia 13. O outro ônibus, que parou para deixar pessoas em Jequié e Vitória da Conquista, só chegou no final da manhã. Além dos R$ 710 da excursão, gastei cerca de R$ 200 de alimentação (e cerveja).


Na parada final, nada de adeus. Com concurseiro, é um até logo. Em janeiro, a Polícia Civil de Goiás fará a prova para o cargo de escrivão. Mais dois ônibus estão previstos para uma nova aventura na estrada, com boa parte da turma que viajou nesta peregrinação retirante. Afinal, concurseiro só para quando passa. Com ou sem banho.



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